★★★★✰ ‘The Irishman’, uma mão lava a outra
Em letras largas, todas maiúsculas, pode ler-se no ecrã “I Heard You Paint Houses” (Ouvi Dizer que Pintas Casas). Aparentemente, esta é uma frase-código que qualquer interessado em contratar um assassino pode usar, sendo o dito associado ao sangue que jorra para as paredes quando as vítimas desse infortúnio são alvejadas no crânio. É também o título do livro escrito por Charles Brandt sobre a vida de Frank “The Irishman” Sheeran, o qual entrevistou já perto da morte, um veterano da Segunda Guerra Mundial e condutor de camiões que, a partir dos anos 50, se tornou um fiel servidor de uma organização criminosa de Philadelphia e que, alegadamente, participou em alguns dos momentos mais marcantes do percurso da Máfia em território norte-americano.
Apesar do trabalho literário apresentar o que podem ser consideradas teorias da conspiração ou até mentiras descaradas, já que alguns dos episódios contados foram bastante desacreditados, Martin Scorsese não resistiu a pegar nesta fábula cuja principal característica é a longevidade do seu protagonista. E quão longe chegou igualmente o realizador norte-americano, uma espécie de colecionador de cromos do submundo do crime, um mestre que dedicou grande parte da sua vida criativa, qual académico obcecado, aos maneirismos, costumes, códigos, rituais, hierarquias e modus operandi destes clãs que, tal como se pode ler no letreiro, já pintaram muitas casas.
Dentro desta temática, o cineasta já apresentou ‘Mean Streets’ (1973), ‘Goodfellas’ (1990), ‘Casino’ (1995), ‘The Departed’ (2006) e a série ‘Boardwalk Empire’, na qual participou como realizador do episódio-piloto e produtor. Apraz referir que ‘The Wolf of Wall Street’ (2013) também pode ser incluído neste leque, já que é um estudo sobre a sociopatia inerente ao descaramento dos crimes financeiros.
Porém, ao contrário dos clássicos referidos, esta nova entrada no cânone dos mafiosos não exibe a mesma exuberância que os seus antecessores. Tudo é mais calmo e contemplativo, tendo o repuxo de frases frenéticas e o endeusamento de canalhas sido substituído por meias-palavras e olhares sugestivos. E Frank, interpretado por Robert De Niro, é o rei da subtileza, um homem que facilmente passa despercebido onde quer que vá, mas que acaba sempre por se fazer notar — o seu maior trunfo é a eficácia e frieza com que executa os serviços que lhe são encomendados. Não é por acaso que Scorsese escolheu a música “In the Still of the Night’ (Na Calada da Noite), um *hit *dos anos 50 dos Five Satins, para acompanhar a personagem em variadíssimas cenas.
Quem o empurra para a armadilha da monstruosidade é o seu mentor Russell Bufalino, interpretado por Joe Pesci, um chefe da Máfia calculista e discreto que, quando a necessidade assim o impele, consegue ser impiedoso. Os diálogos entre os dois estão carregados de referências a trabalhos anteriores de Scorsese, assim como se ensopam numa ligeira paródia aos filmes de *gangsters *em geral, conforme Frank, em várias conversas furtivas, tenta decifrar se Russell o está a mandar assassinar alguém ou simplesmente fazer uma cobrança num tom mais duro. Ambos, em conjunto com Al Pacino, que interpreta o famoso sindicalista Jimmy Hoffa, do qual a personagem de De Niro se torna braço-direito, levam a cabo as suas melhores interpretações dos últimos tempos.
De forma aos atores percorrerem uma narrativa que ocupa várias décadas, os seus rostos foram rejuvenescidos através de técnicas informáticas de ponta, tal foi a obstinação de Scorsese em não prescindir dos seus meninos de ouro, talvez mais enrugados e franzinos do que o desejável para o botox digital ser completamente eficaz. Por exemplo, numa cena em que o Frank trintão entra em confronto físico com alguém que decidiu castigar, o momento, filmado em plano aberto, parece bastante postiço, podendo perceber-se que é um corpo quase octogenário que encena um espancamento que se queria vigoroso, mas que cai no reino da artificialidade. Ademais, algumas discussões perdem o seu impacto dramático devido à ausência de expressão facial, uma imperfeição que se pode tornar algo distrativa, principalmente para os cinéfilos que, em tempos idos, consumiram os joviais rostos destes artistas.
Contudo, a potencial sensação de estarmos a ver uma turma de fantasmas tem um efeito psicológico praticamente metafísico, quem sabe intencional. Este é indicativo daquilo que todos, cada um à sua maneira, podemos estar a perceber: existem pedaços da nossa experiência cinematográfica que estão a morrer, que já não voltam. E não existe computador que os faça voltar. Os senhores que preenchem ‘The Irishman’ são insubstituíveis, são a fronte das convulsões criativas de outrora. Foram Michael Corleone e Travis Bickle, Frank Serpico e Jake La Motta, Tony Montana e Tommy DeVitto, foram as personagens em que as personagens de agora se baseiam. Fizeram as cenas inovadoras em que as cenas de agora se baseiam — o filme do momento, ‘Joker’ (2019), é uma retorsão modernista de ‘Taxi Driver’ (1976) e ‘The King of Comedy’ (1982), ambos encabeçados por De Niro e realizados por Scorsese. Interpretaram tantos polícias e criminosos que de certeza que alguns dos que preenchem essas ocupações na vida real ainda os tentam imitar. Este processo de rejuvenescimento funciona como uma distorcida e homenageante elegia a todos os momentos elevados por estes deuses inesquecíveis, transmite a inolvidável mensagem que Scorsese quer que, finalmente, compreendamos: o Cinema, o velhinho meio que tanto amamos, está a morrer, vai deixar de ser o que era, está a mudar. Nada mais irónico este projeto ter sido lançado com a ajuda da Netflix.
No que aos outros aspetos técnicos diz respeito, há que realçar o cinematógrafo Rodrigo Prieto, que já tinha feito um excelente trabalho em ‘Silence’ (2016). Um dos pormenores mais interessantes é a forma como este conseguiu ir retirando cor às imagens com a passagem do tempo, processo que é devidamente acompanhado pelos sentimentos cada vez mais sombrios das personagens e pelo seu declínio físico. Enquanto as cenas relativas aos anos 50 e 60 aparentam uma tez viva e alegre, as relativas aos anos 70 e por aí adiante metaforizam progressivamente o ressentimento e amargura dos mafiosos que vão ficando velhos e plenos de dúvidas e receios, adotando tonalidades mais frias.
Pois é esse o grande tema de ‘The Irishman’: a morte e as reflexões que nascem do embate com a sua inevitabilidade. Do lado avesso à sua habitual abordagem ao género, Scorsese viaja para além do glamour que tanto outorgou às suas criações, desbrava mato rumo ao fim, à solidão de quem fica para contar a história. Numa das últimas cenas, Frank, numa cadeira de rodas, diz que só damos pelo tempo passar quando chegamos ao momento de enfrentar as consequências da sua passagem. É nas derradeiras margens da vida que esta personagem começa a pensar no rasto de destruição que deixou, nas poças de sangue e lágrimas que alguém teve de limpar, uma esposa, um filho, talvez até um pai, como ele.
Dito isto, uma das peças fundamentais deste passeio pelas angústias do criminoso acabado é a sua filha Peggy, interpretada por Lucy Gallina como criança e por Anna Paquin como adulta. No reino de Scorsese, por norma, as personagens femininas são algo ignoradas ou transformadas em acessórios, muito por culpa da necessidade artística de caricaturar homens que, no fundo, apenas se importam com o seu legado, com a sua imagem perante o mundo. A isto acresce o facto de, na maioria das vezes, a narrativa estar a ser contada segundo o ponto de vista da personagem principal masculina — a exceção é Karen, a esposa de Henry, o principal macho de ‘Goodfellas’ (1990), que também expõe um pouco da sua experiência, mesmo que todos os caminhos acabem por ir dar ao seu marido.
Nesta nova romaria à terra dos malfeitores, a filha de Frank funciona como consciência da obra. O seu olhar de reprovação e ausência de participação são usados pelo cineasta para relembrar que, apesar da excitação que muitas vezes se pega a nós quando vemos filmes deste género, o traço mais identificável nas ações destes homens é o desapego ao ser humano do lado. Talvez pela primeira vez na sua carreira, este admite que nos transformou em adoradores de bestas e demónios, assassinos sem escrúpulos, oferece consequências duradouras e devastadoras às atividades das suas personagens, reduzindo-as à frustração da velhice, ao instintivo medo de morrer, de perder importância, de cair no esquecimento. Este é o filme mais vulnerável de Martin Scorsese, um exercício de retrospetiva e reflexão não só sobre os seus mafiosos, e a relação destes com a cultura popular e a sociedade em geral, mas também sobre o que afinal significou a sua carreira de realizador.
Além disso, um dos danos colaterais do filme é o país que serve de cenário para as avarias deste grupo de mafiosos e homens do sindicato, os Estados Unidos da América. Através da interligação, resta saber se fidedigna ou não, de vários eventos de cariz político, como a invasão da Baía dos Porcos, o assassinato de JFK, a crise dos mísseis de Cuba ou o caso Watergate, com o mundo do crime e os seus intervenientes, é criada uma perversa rede narrativa que permite apontar para um país que está à venda e à mercê dos interesses de um punhado de “bons rapazes”, face à pobreza e ingenuidade de muitos.
Num momento sagaz, o guionista Steven Zaillian concebeu um fugaz encontro entre vários criminosos e o presidente Nixon num campo de golfe, ao mesmo tempo que outras personagens assumem ter injetado “dinheiro sujo” na campanha do republicano e brincam com o facto de não se poder confiar em alguém que está sempre a jogar golfe. Recorde-se que, como foi destacado num artigo recente do Huffpost, o atual presidente norte-americano, Donald Trump, já gastou 115 milhões de dólares de dinheiro público em idas ao seu próprio campo de golfe, o equivalente a 287 anos de salário presidencial. Nestas contas não constam os gastos dos seus ajudantes e seguranças durante estas “escapadinhas” ou os valores astronómicos que os seus hotéis e resorts têm faturado à custa das visitas de diplomatas, empresários, lobistas e, quem sabe, mafiosos — uma mão lava a outra.
Um dos raciocínios a tirar de ‘The Irishman’ relaciona-se com a forma descaradamente imoral como os trajetos políticos que se desenrolavam há algumas décadas, de uma maneira mais sofisticada, continuam a acontecer, auxiliados por cidadãos tão embeiçados pelo carisma destes mafiosos de gravata que nem reparam que estão a servir de base moral para atos intrinsecamente criminosos. Talvez se engane quem afirma que Scorsese fez um filme sobre um país a morrer ou sobre um tempo que já não volta. Este filme é sobre como essa nação se mantém igual, apenas mudaram os rostos e o refinamento dos esquemas fraudulentos do costume. Um país, nada mais que uma representação da filosofia ocidental, onde os mafiosos morrem e outros ocupam o seu lugar, como a mítica Hidra cuja cabeça decepada dá origem a duas ainda mais perigosas.
Tal como a pequena Peggy, e até o próprio Frank, todos nós, o povo, somos vítimas de homens como Russell Bufalino, Nixon ou Trump, carrascos que tentam normalizar códigos de conduta absurdos e imorais, na esperança de que as pessoas à sua volta os aceitem e adotem em troca de proteção ou favorecimento. Não é à-toa que Scorsese optou por mostrar centenas de camionistas e operários a gritar o nome de Jimmy Hoffa, um corrupto condenado, enquanto este distribui um discurso populista, repetitivo e ensaiado sobre união, ao mesmo tempo que a personagem de De Niro inala e admira o seu descaramento. Ou por mostrar a prontidão com que o irlandês acede às ordens do “chefão” interpretado por Pesci, mesmo quando o acatamento das mesmas o condena ao sabor amargo da traição. Frank “The Irishman” Sheeran é uma metáfora para os sujeitos que, tanto outrora como atualmente, se deixam enredar de tal forma em certas retóricas desviantes que tudo se torna relativo — a vida de outrem deixa de ter valor se o ato de matar é simplesmente mais um requisito para se fazer parte de algo, de um movimento, de uma ideologia. Os nomes podem variar, mas o fim é o mesmo: violência.
No fim, um homem derrotado, velho e exausto olha para uma porta entreaberta. Até esse dia, não conseguiu perceber totalmente o porquê dos seus atos hediondos, nem sabe se está realmente arrependido. Todos os que lhe exigiam lealdade morreram ou foram mortos. Só sobrou ele. A selvajaria do passado deixou de fazer sentido, baseava-se nas ideias e prioridades de outros, nas quezílias mesquinhas de quem apenas ambicionava mais dinheiro e poder, num vazio colossal.