★★★★★ Em ‘Phantom Thread’, o amor é um duelo

in #pt7 years ago (edited)

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O ser humano é complicado. Alimenta-se do trauma, da insegurança, da mágoa, do medo. Mas também do desejo, de fantasias, da confiança que incute a si próprio ou que lhe é injetada pelos outros. E, acima de tudo, alimenta-se de amor, essa derradeira iguaria que todos, direta ou indiretamente, acabamos a procurar. O problema, ou a dádiva, é que o último exige uma degustação a dois, reivindica um estado de partilha constante, requer, já que inevitavelmente a faz crescer, intimidade. E é nas brechas dessa estreiteza, dessa aproximação de potencial catastrófico, que existe um sítio escuro onde o par amoroso batalha numa espécie de duelo quimérico pela alma um do outro. Para que, no fim, ganhem os dois, ou nenhum, ou vivam num limbo eterno, até que a morte os separe, onde essa guerra é parte do quotidiano, dum jogo de vontades que, de vez em quando, os faz vomitar todos esses alimentos tóxicos acumulados durante anos num estômago sem fundo, num ciclo de destruição e renovação. Mas, o amor, nem sempre vence, nem sempre sai derrotado, por mais pedras que o tempo lhe atire, assim como nunca é vivido por duas pessoas da mesma maneira. É esse o seu charme, o seu fado, a sua maldição.

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Em Phantom Thread, o amor é, efetivamente, um duelo, um veneno nocivo, mas também libertador. E essa contenda começa quando Reynolds Woodcock, um costureiro de elite interpretado por Daniel Day-Lewis, se encanta por Alma, uma criada de hotel interpretada por Vicky Krieps, e a leva para o seu seio familiar e profissional, aquilo a que este arrogantemente chama “Casa de Woodcock”, termo normal na Londres dos anos 50. Nesse antro silencioso, onde quase só se ouve aquilo que o seu mestre permite que se ouça, tal é o gosto pelo silêncio, pela exercitação dos seus rituais e satisfação das suas vontades, jaz um atelier de moda onde se vestem algumas das figuras mais proeminentes da monarquia, todas elas em busca do talento de Woodcock. Resumidamente, toda a rotina da casa é definida de forma a facilitar a concentração e inspiração do génio indomável do costureiro, esquema facilmente associado ao machismo. E, a princípio, o filme poderá ser confundido com o tradicional conto sobre o artista e a sua musa forçada, já que o sujeito irritadiço faz da rapariga uma espécie de manequim alugado, uma boneca humana em que pode experimentar vestidos e descarregar as suas frustrações. Porém, entre o embate inicial e a perseverança da rapariga, vai sendo criada uma relação volátil, um acordo de destruição mútua em que, nas pausas para a ingestão de alimentos tóxicos, se pratica a ternura. Como árbitra deste choque de vontades, serve a irmã do costureiro, Cyril, interpretada por Lesley Manville, nascendo assim um trio que funciona à base do ego do cavalheiro e dos seus devaneios. E, a estes, juntam-se décadas de cinema. Pavoneia-se o Rebecca (1940) de Alfred Hitchcock, com a irmã de Woodcock a equiparar-se a Mrs. Danvers, na altura interpretada por Judith Anderson, dá um ar de sua graça o Peeping Tom (1960) de Michael Powell ou o Madame Bovary (1949) de Vicente Minnelli, tal atenção é dada ao detalhe e à conjugação das cores, e ainda se pode encontrar escondido a um canto o casamento problemático de Wuthering Heights, narrativa repetente que teve mais que uma versão bem conseguida. Todos estes intrusos, e muitos mais, dançam em frente dos nossos olhos, suplicam que caiamos na armadilha de nos refugiarmos nas convenções do passado, naquilo que achamos que o filme vai ser. Mas não. Este não é o típico “filme de referências”, devorador dos méritos de outrora, das obras de outros, não. Dessa base identificável, nasce antes algo de novo, uma reformulação insólita de vários géneros que se entrelaçam ao sabor duma tempestade inesperada, um turbilhão de ventos incompatíveis, mas que, sem se perceber bem como, convivem num ecossistema virgem e barroco. E, do olho desse furacão, por onde voam um romance gótico, um retrato de época, uma comédia negra ou um drama psicótico, sai uma embarcação subversiva, velhaca e sadomasoquista, extremamente humana. Ao leme, Paul Thomas Anderson.

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Com Daniel Day-Lewis novamente à sua disposição, seria de esperar que o realizador apontasse para mais uma das suas personagens modelo, robôs surrealistas e carrancudos ao serviço duma metáfora maior, dum experimentar mais intelectual que intimista – bastará referir que Daniel Plainview, a personagem principal de There Will Be Blood (2007), pode ser lido como uma metáfora para o capitalismo voraz. No entanto, neste seu novo filme, as personagens são nada mais que seres humanos, com comportamentos algo excêntricos, claro está, mas humanos são. Essa veia parabolista do cineasta, e aí talvez resida a genialidade de Phantom Thread, faz-se sentir, ao invés, nas tarefas corriqueiras, nos afazeres do dia a dia. Mais especificamente, no ato de comer e nos preparativos que lhe estão associados. Todos os conflitos do filme, e não só, acontecem à mesa, em frente à respetiva refeição. Isto porque uma das manias do costureiro, uma que é bastante subtil, é exercer controlo através da comida. Quer quando, por exemplo, num restaurante, pede a refeição pela irmã sem que esta chegue a ter qualquer voto na matéria, quer quando, durante o pequeno-almoço, exige que Alma coma silenciosamente, Woodcock inflige uma espécie de ditadura encapuçada sobre as duas mulheres. Geralmente, nos filmes, a comida funciona como uma representação figurativa de prazer, satisfação, conforto físico ou psicológico, relacionada, em alguns casos, com os preliminares sexuais. Porém, Thomas Anderson usa essa dinâmica duma forma sinistra, adotando os atos de cozinhar e comer uma tonalidade perversa. Visto Woodcock ser o suporte financeiro da relação, Alma encontra na comida e na sua confeção um utensílio para virar o feitiço contra o feiticeiro, uma janela para exercer domínio sobre o parceiro, ganhando as cenas que exibem essas incumbências um relevo dramático extenuante, um erotismo estilizado, um soco no maxilar quando a catarse anuncia a sua presença. Como parte fulcral da relação conflituosa do casal, e sem que mais detalhes sejam revelados, a comida transforma-se numa arma de destruição maciça, um alicerce essencial para que o filme faça sentido como um todo, uma metáfora para a volúvel dinâmica de poder entre o casal.

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O realizador, que, segundo consta, fez também de cinematógrafo, apesar da colaboração de Michael Bauman nas questões relacionadas com iluminação, filmou a obra de maneira a criar uma certa aura intemporal, sendo a Londres dos anos 50 reduzida a um espectro abstrato do mundo lá fora. Uma luz nívea inunda muitas das cenas, nem que seja pela greta duma janela semicerrada, incidindo, geralmente, sobre as criações de Woodcock, as modas a que este dedica corpo e alma, e a favor das quais vende o seu bem-estar. A mesma luz que incide sobre Alma nos seus momentos mais diabólicos, incitando à parábola do “anjo da morte” que, sorrateiramente, pode causar grandes estragos, basta um pouco de imaginação. A passagem do tempo, elemento que falha na maioria dos filmes, é ilustrada duma forma sublime, com um pautar de ritmos exímio e hipnotizante. Juntamente com o editor de There Will Be Blood, Dylan Tichenor, e o compositor Jonny Greenwood, Anderson criou uma espécie de “filme composto” – cada movimento corresponde a uma nota musical, cada nota motiva um corte no plano, cada silêncio tem o peso necessário -, como se o filme ganhasse vida própria e, a pouco e pouco, saltasse da sua masmorra sósia dos filmes de Hitchcock e companhia para nos assolar com uma folia traiçoeira, um complô para assaltar o cofre sagrado onde guardamos aquilo que achamos saber sobre filmes e sobre os caminhos que estes podem tomar. O trio de protagonistas faz um trabalho excecional e Day-Lewis despede-se da sétima arte com uma interpretação refinada, ossuda, plena de arestas misteriosas que dão à sua personagem a máscara dum tirano confuso, uma criança sedenta por carinho e atenção na pele dum adulto preso a uma estrutura social burguesa em extinção.

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O machismo tóxico é um tema recorrente na carreira do cineasta norte-americano. Relembre-se Magnolia (1999), no qual um jovem Tom Cruise interpreta um pregador motivacional cujo lema é “Respect the Cock”. Neste novo filme, essa temática, que, curiosamente, inunda a agenda atual, serve de cama para o espectador se deitar no conforto das suas próprias expetativas. Vagarosamente, debaixo do seu estrado começa a amadurecer um monstro complexo cujo sangue lhe é injetado pelas superstições e microagressões que permeiam toda a narrativa. Esse “eu quero, posso e mando” vai sendo combatido pela destemida Alma e por uma noção profunda do que é gostar de alguém e do que é necessário para esse sentimento sobreviver aos dias de guerra. Bastará amar ou cedências terão de ser feitas? Devemos aceitar os defeitos da outra pessoa como algo imutável ou devemos desafiá-los? Devemos sujeitar-nos a definhar como uma projeção idealizada daquilo que o outro faz de nós, uma ilusão desenhada a preceito das suas conveniências, ou devemos combater esse logro de proporções épicas? Até que ponto devemos chegar em nome desse amor, sob pena de destruirmos a nossa essência? Terá de se referir igualmente o lado supersticioso do costureiro, a dimensão paranormal onde este julga existir a sua mãe falecida, noção essa que paira sobre toda a história como uma assombração, na missão de relembrar que Woodcock, no meio do terrorismo psicológico impingido nos outros, poderá simplesmente necessitar de alguém que cuide de si, que o embale nos momentos mais soturnos da sua existência – uma nova figura maternal. Na navegação sinuosa por este nevoeiro repleto de sussuros e interrogações, Thomas Anderson criou aquele que pode ser considerado o manual de comunicação entre Woodcock e Alma, uma linha fantasma, um insólito ponto de equilíbrio que, certamente, não deixará ninguém indiferente. Uns sentirão escárnio pelo que estão a ver, outros poderão entrar num pranto compulsivo ou, até, adotar todo um lado mais frio, mais calculista. Em Phantom Thread, o amor é palco para a rebelião, para um jogo de domínio e submissão. Está-se perante um potencial clássico que, durante anos, será visto e dissecado, uma maquiavelice atípica, pois conta-nos um segredo que não queríamos ouvir, que nem ousávamos supor, um aparente e sofrido exorcismo que se transforma num dos filmes românticos mais enigmáticos de todos os tempos.

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Amo o trabalho do Paul Thomas Anderson, vários filmes fantásticos, sem dúvidas um dos melhores diretores da atualidade. Estou na expectativa para ver esse e sua crítica me animou mais ainda!
Valeu!

Se gostas do Paul Thomas Anderson, sem dúvida que este filme te vai agradar. Ao princípio parece um filme de época banal, mas, a pouco e pouco, vai crescendo e ficando cada vez melhor. A catarse final é completamente arrebatadora, apesar de perversa. É um filme sobre as emoções humanas e o quão estranhas estas podem ser.

So glad I saw this film in the theater. It was such an interesting and thick tone, vibe, feeling. I will watch any Paul Thomas Anderson film. On and on. Cheers. ¡Interesante!

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