Uma caminhada na Sexta Feira Santa

in #pt7 years ago

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Um breve relato de uma caminhada introspectiva num dia de reflexão.

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Às 18 horas, normalmente me encontro no terraço do prédio e sempre ouço os sinos que tocam das igrejas, tanto da católica quanto da protestante, sinos que, ao cair da Ave Maria, sempre me levam à introspecção. Na quinta-feira que antecede a Sexta-Feira Santa, os sinos foram diferentes. Eles foram mais demorados, lentos e transmitiam um aspecto de importância. Faziam pensar em todos os acontecimentos daquela data, como coisas tão grandes se encaminhavam: a traição, a oração no horto, a via crucis, a morte e, por fim, a ressurreição.

Os sinos anunciavam um pouco de tudo isso. Por um tempo compreendi algumas reflexões de Mircea Eliade sobre a natureza do tempo histórico e do tempo sagrado, mítico. Os sinos naquele tom cumpriam justamente o papel de abrir os portões para o tempo sagrado, para o Eterno. Uma vez que é tido que os mitos se repetem sempre numa esfera eterna, o calendário litúrgico é a forma de que estes mitos penetrem na realidade, no cotidiano, delimitando um espaço no ano no qual transbordam sobre o mundo e a psique. Percebia que era tal coisa que ocorria ali: o mito eterno da vitória sobre a morte e da salvação da alma transbordava sobre o crepúsculo azul que aquela quinta pintava entre as nuvens.

Ainda apegado a essas visões, decidi aproveitar a Sexta da Paixão, um dia de recolhimento e de memento mori para fazer uma caminhada solitária, optando por não comparecer ao serviço litúrgico e à procissão habitual. Não seria mais uma caminhada de aventura e exploração com amigos, mas um caminho solitário e recolhido de tudo.

Felizmente, havia no ar um tom de respeito e silêncio. Eram poucas as pessoas fazendo algazarra. De alguma forma aqui no interior essas datas ainda são respeitadas em geral. Prossegui caminhando lentamente com destino a um morro ao qual sempre vou com amigos para explorar, fazer fogueiras e acampar.

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Em mente tinha os significados daquele dia e da Páscoa, assim como o que ela poderia, a nível mais ritualístico – ou seja, simbólico – a nós que vivemos no Hemisfério Sul. Sabemos que a igreja santificou as práticas pagãs naturais, adotando-as como parte de sua liturgia. Toda a carga simbólica que reveste a Páscoa é referente ao despontar da primavera depois do fim do duro inverno, estando as privações da Quaresma associadas às privações materiais do final do inverno. E o que tudo isso significa para nós que vivemos no Hemisfério Sul onde, na mesma época, as estações são inversas às do Hemisfério Norte? Aqui entramos no outono. Tal como toda aquela decoração de Papai Noel e de neve não faz sentido para nós que, no Natal, estamos no verão, também não faria sentido o simbolismo primaveril que transita no imaginário nesse tempo pascal. Porém, essa questão seria para outra ocasião e não chega a tocar realmente na temática religiosa levantada pela festividade cristã.

Seguia o caminho, mas me sentia um pouco desconfortável enquanto ainda estava nas partes movimentadas da cidade. Levava comigo uma mala com água, cachimbo, fumo e dois livros. Um dos livros era A Nuvem do Não Saber, escrito por um monge inglês anônimo da Idade Média. Falando rapidamente, o livro é uma espécie de orientação à meditação no Nada, muito semelhante às meditações zen-budistas. Ele propõe uma meditação que assuma que a Deus não corresponde nenhum atributo, Ele é a absoluta negatividade (só pode ser definido por aquilo que não é, jamais pelo que é); assim, a meditação consiste em reconhecer que entre nós e Deus há uma eterna Nuvem de Não Saber (Cloud of Unknowing). Deve-se meditar nessa nuvem, nesse não saber e, ao mesmo tempo, eliminar da mente qualquer pensamento em qualquer criatura, atributo ou coisa. É uma imersão no Nada. O autor também recomenda a repetição de certas palavras (sim, da mesma forma que os mantras) para auxiliar no processo.

Subindo o morro, acabei parando num carreiro para descansar, pois fazia um pouco de calor e eu já tinha caminhado alguns quilômetros e a subida é bastante íngreme, sendo que da base do morro até o topo são quase 200m de elevação. Depois de um momento de repouso e paz, segui caminho até o topo. No caminho, encontrei alguns jovens que iam descer uma trilha de bicicleta. Lembrei-me de quando era mais novo e tive algumas experiências assim com meus amigos praticantes de downhill. Aquele morro é cheio de trilhas que, mesmo que um tanto perigosas, podem ser descidas de bicicleta. No entanto, para isso é preciso ter bastante habilidade, pois são caminhos bem estreitos, sinuosos e sempre úmidos. Muito dificilmente uma trilha será descida sem que se caia ao menos uma vez. Era bastante divertido.

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Chegando ao meu destino, subo em um pequeno monte escondido da estrada e fico a contemplar a cidade junto dos meus pensamentos. Passo um bom tempo meditando no sentido da época e naquelas coisas que mencionei no início do texto. Logo depois, abro em capítulos aleatórios o livro que trouxe comigo e deixo que suas palavras sobre questões como humildade, pecado e vida espiritual iluminem meu raciocínio. Após isso, segue-se um tempo de meditação, tal como recomendada no livro, esta que acaba sendo interrompida por mais gente que chegou à estrada lá embaixo e felizmente não me viu.

Quando tomamos coragem para romper com o cotidiano, com os apetrechos tecnológicos e nos lançamos em silêncio no mundo para apenas estar na sua quietude, a perspectiva muda toda de figura. Há a sensação de experimentar o mundo de modo distinto, único, verdadeiro, como se antes, quando na repetição dos apressados hábitos diários, estivéssemos sendo inautênticos, autômatos, perdidos de nós mesmos. De tempo em tempo, esse mergulho em si mesmo acaba exercendo uma função centralizadora e ordenadora para o ser.

Começa a escurecer e o céu pretieia pra chuva. Parece que vai bater água. Após fumar o meu cachimbo, guardo minhas tralhas e faço o caminho de volta, novamente em silêncio, pensando nos significados daqueles dias e no mistério da morte e da vitória sobre a morte, do mundo sagrado que se repete na eternidade e nesse tempo invadia o tempo humano, tornando-se quase palpável no ar daquele dia silencioso.

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