[PARTE #01] O processo de finalização de som do filme “Tropa de Elite 2”
É fato que Tropa de Elite 2 enquadra-se em um grupo seleto de filmes do cenário da produção cinematográfica brasileira que consegue reunir profissionais, técnicos e artistas de alto nível em seus diversos setores, seja na direção, no roteiro, na seleção e preparação do elenco, na atuação, nos efeitos especiais, na produção, na fotografia, na direção de arte, no figurino, na maquiagem, na edição/montagem etc. Porém, um ponto que ainda é desconhecido por grande parte da sociedade é a questão da trilha sonora, sobretudo no que tange à investigação dos métodos, dos fluxos, dos obstáculos e das condições ideais de trabalho.
Outro fator que muitas vezes também é negligenciado é o processo de elaboração e utilização dos elementos sonoros que participam ativamente da construção dramática emocional da narrativa. A força expressiva que o som proporciona para uma obra audiovisual é hoje incontestável. Com a intenção e a oportunidade de debater temas significativos para alavancar o aprimoramento da produção sonora cinematográfica nacional, o objetivo geral desta série de artigos é a conscientização sobre a importância da elaboração de um projeto de som bem consolidado para uma obra audiovisual autoral ou comercial.
O foco específico é expor e analisar os bastidores da pós produção sonora do filme considerado um fenômeno no cinema brasileiro, centrando na descrição dos processos de edição de som e mixagem e realçando principalmente a criação e a participação de um dos elementos que compõe a banda sonora do filme: os ruídos. Contudo, não será posto de lado a contribuição dos demais elementos da trilha sonora na concretização dinâmica do projeto de som do filme.
A pesquisa para este artigo foi realizada documentalmente por meio de entrevistas e conversas com os principais profissionais que trabalharam na finalização sonora do filme. Foram entrevistados o mixador Armando Torres Jr., o supervisor de edição de som Alessandro Laroca e parte da sua equipe. A seguir teremos uma reflexão sobre complicados desafios enfrentados pela produção sonora no cinema brasileiro contemporâneo. Depois, serão desvendados os bastidores da pós-produção do som do filme que se tornou a maior bilheteria da história do cinema no país.
Desafios do Som no Cinema Brasileiro Contemporâneo
Partindo do princípio de que a maioria dos filmes nacionais ainda não possuem o privilégio de Tropa de Elite 2, de estruturar-se com uma alta e requintada produção, faz um tempo que os profissionais de som no Brasil enfrentam problemas que restringem suas condições ideais ou até mesmo básicas de trabalho. O argumento aqui defendido é que o desconhecimento dos métodos, dos fluxos, das necessidades e desafios de trabalho do departamento de som de cinema e a falta de consciência da importância da elaboração de um projeto sonoro bem consolidado para um filme, são os principais fatores que alimentam estes importunos.
O advento do som no cinema protagonizou grandes mudanças tanto na forma de concepção quanto na forma de apreciação da “sétima arte”. Desde a inserção desse aparato, a técnica e a linguagem vieram evoluindo e, com o desenvolvimento tecnológico contínuo, principalmente a partir dos anos 70, constatou-se um elevado progresso no ramo do áudio, expandindo as possibilidades de experiência no meio cinematográfico. Hoje pode-se afirmar que o som nos filmes nacionais é de alta qualidade técnica, assim como a qualidade de reprodução sonora nas salas de exibição vem melhorando significativamente se comparada a décadas passadas.
A evolução tecnológica contribuiu diretamente para esse progresso e se desenvolve ainda mais com a digitalização dos meios de produção e reprodução de som. Nota-se também que muitas vezes na realidade brasileira o nome “trilha sonora” é confundido ou associado ao conjunto de peças musicais de um produto audiovisual, ou seja, a trilha musical. Isso de certa forma restringe a compreensão e a reflexão sobre a complexidade e importância da produção sonora como um todo no cinema. Além desta situação cultural, a questão fica mais dramática quando a falta de conhecimento ou aprofundamento sobre esse assunto atinge também os próprios realizadores do cinema nacional e é nesse ponto que a produção sonora cinematográfica brasileira estagna. Poucos são os diretores, produtores, montadores, diretores de fotografia, dentre outros profissionais, que conhecem a organização, o trabalho, as necessidades e dificuldades do departamento de som de um filme. Isso esboça uma discrepância: de um lado há uma intensa evolução tecnológica dos meios de gravação, manipulação e reprodução do som no cinema, do outro, a pouca valorização dos profissionais do som cinematográfico.
Um hábito recorrente no cinema brasileiro é a contratação da equipe de pós-produção de som tardiamente. Em grande parte dos casos essa equipe de finalização de som entra no projeto após a estrutura do filme já estar definida. O som passa a ser “refém” da imagem. A articulação audiovisual é altamente prejudicada e a ligação entre o departamento de edição/montagem e o departamento de pós-produção de som se restringe a aspectos técnicos. Vale ressaltar que a etapa de edição/montagem é fundamental para a concepção do “desenho” de som do produto já que é onde se estabelece uma articulação definitiva para a narrativa, porém raros são os montadores que possuem um pensamento sonoro rebuscado influente em seus trabalhos. Logo, é imprescindível que haja uma parceria entre esses departamentos também durante o processo de montagem do filme para que uma contribuição audiovisual coletiva seja melhor formulada e estruturada para o enriquecimento da obra audiovisual.
Outro grave problema, talvez o que mais prejudica o resultado sonoro final do filme, é a falta de comunicação entre o técnico de som direto e a equipe de pós-produção de som. Apesar de uma certa normatização técnica encontrada, por exemplo, a utilização do Pro Tools como estação de trabalho padrão nos estúdios de finalização de som cinematográfico, e da aparente semelhança entre as formas de organização do trabalho, existe uma diversidade de métodos, formas de pensamento e fluxos de trabalhado entre muitas equipes de som espalhadas pelo Brasil. Essa diversidade encontra- se tanto diante das equipes de som direto quanto nas equipes de edição de som e de mixagem. Sendo assim, quando não há uma comunicação efetiva entre essas partes, além da difícil convergência para a assimilação de um criativo pensamento sonoro para o filme, muito tempo pode ser perdido em reelaborações de conceitos técnicos ou estéticos relativos ao projeto de som da obra. Essa interação deve ocorrer essencialmente antes das filmagens. A liderança e o comprometimento do diretor, somado ao apoio e organização dos produtores, deve incentivar a promoção desses contatos.
Para ilustrar a diversidade de métodos de trabalho na finalização de som, há equipes de edição de som, por exemplo, que utilizam, na maioria dos casos, apenas os diálogos captados pelo técnico de som direto. E ainda, como é o caso da equipe de finalização de som do Tropa de Elite 2, com um conceito de espacialidade da voz regido preferencialmente pela utilização dos diálogos captados por microfones de lapela nos quais, teoricamente, há uma maior relação sinal/ruído, ou seja, um maior isolamento da voz em relação aos ruídos de fundo da cena. Isso reflete um método de trabalho de captação, edição e mixagem de diálogo distinto.
Também são encontradas no Brasil equipes de edição de som que seguem uma outra linha de trabalho com um conceito de espacialidade diferente. Optam por uma sonoridade mais naturalista, voltada para o som direto, preferindo a utilização dos diálogos e ruídos captados pelo técnico de som direto no set através de microfones aéreos, hiper-cardioides (muitas vezes equivocadamente chamados de boom). Há ainda equipes que se utilizam de um equilíbrio entre os dois processos citados, mesclando a utilização de microfones de lapela e aéreos, podendo tanto variar na escolha de uma sonoridade trabalhada principalmente com elementos sonoros concebidos posteriormente na finalização de som, quanto na escolha de uma sonoridade mais voltada para os elementos captados pelo técnico de som direto.
Um caminho para solucionar a ausência de comunicação entre técnico de som direto e a equipe de pós-produção de som é contratando um diretor de som, que também pode ser chamado de sound designer. Este profissional é responsável pelo desenvolvimento do conceito geral da estética de som do filme. Seja no trabalho com os diálogos, com o silêncio, com os ruídos de efeito, ruídos de ambiente e ruídos de sala (foley), seja comunicando com o compositor da trilha musical, conversando com o técnico de som direto, coordenando os processos de trabalho dos editores de som, da dublagem, ou seja, centralizando todo o processo de produção sonora, da análise do roteiro junto ao diretor até a mixagem final. É ele que desenvolve o projeto de som do produto, explora as possibilidades de expressão do som, cria ligações dramáticas entre personagens, lugares, objetos, ideias e experiências por meio dos elementos sonoros, expandindo a resposta emocional do filme através da transformação do material sonoro.
O cinema é uma arte audiovisual. Mesmo que cada projeto possua suas particularidades, seu estilo ou gênero, a compreensão de suas verdadeiras necessidades devem ser, igualmente, áudio e visuais. A elaboração sonora, assim como a visual, também deve ser iniciada na primeira fase do projeto. Proposta idealista? Não. Filmes como, por exemplo, Playtime (Jacques Tati, 1967), O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972), Veludo Azul (David Lynch, 1986), Um Céu de Estrelas (Tata Amaral, 1996) e O Pântano (Lucrecia Martel, 2001) possuem um rebuscado trabalho audiovisual nos quais o uso criativo da trilha sonora é fundamental para a narrativa. Como um trabalho sofisticado na banda sonora resulta de uma sofisticação no modo como se articula som e imagem, é natural que tal papel sonoro seja resultado de uma articulação prevista desde a direção, na filmagem, ou mesmo antes disso, já no roteiro.
Pelo conjunto de questões expostas pressupõe-se um know how dos profissionais de som do cinema brasileiro. Então, é imprescindível que todos, do técnico de som direto ao compositor da trilha musical passando pelos supervisores e editores de som e o mixador, conheçam as funções, as obrigações, as responsabilidades, as dificuldades e os métodos de cada parceiro de profissão e sua área de atuação, sem esquecer também de terem consciência de todo o processo da arte dinâmica de construção, elaboração e decupagem da narrativa fílmica enquanto obra composta de imagens e sons.
Gostei muito do filme!E não fazia ideia dessas coisas que você colocou aqui! Valeu por compartilhar!
Que bom @coyotelation! Nos próximos "capítulos" então vc irá se surpreender com todo o processo de criação sonora do filme em si! Fique ligado! rs Valeu! Abs
Que irado. Gosto muito de cinema, faço minhas criticas aleatórias, e me impressionei com a elaboração desta complexidade da sonoridade. Estarei acompanhando para aprender e entender um pouco dessa área! Parabéns pelo post!
Que bom que gostou @matheusggr logo mais já posto a segunda parte com mais novidades desse universo! valeu! abs
Sensacional!!! Grande post mesmo!
Eu concordo plenamente... que o som é de uma importancia tremenda.
A "qualidade" de imagem pode estar cheia de ruído como opção estética e fazer parte de um bom filme. Mas se o som em geral estiver com ruído o filme não vai ser muito bom.
É uma característica de amadores e/ou pessoas pouco experientes a falta de preocupação com o som. Falam de tudo menos de isso.
Infelizmente ainda não tive o previlégio de trabalhar com um sound designer. Brevemente...
Fico á espera de mais posts!
Bacana @maxjoy! Total... é uma cultura audiovisual ainda se amadurecendo e utilizando de todo seu potencial. Se precisar de algo, estamos aí! também trabalho como diretor de som/sound designer. Logo mais já posto a segunda parte com mais novidades desse universo! valeu! abs
Maravilha!!!
Já vi que há parte 2 e 3 disponível. Amanha vou ler ambas.
Abraço!!