A falácia do livre arbítrio
Quantas vezes não ouvimos ou mesmo proferimos frases como "escolheu a vida do crime porque quis", "podia estar estudando mas preferiu roubar", "ela fica com ele porque gosta de apanhar", "teve a opção de fazer o certo mas decidiu pelo errado", "está nessa vida porque quer", entre tantos outros julgamentos que surgem diante do erro alheio.
Geralmente quem diz estas coisas, escolhe julgar o que desconhece de fato.
Quando temos perto de nós referências do que é ter uma vida bem-sucedida do ponto ético, material e subjetivo, torna-se claro que é possível chegar no mesmo lugar. Parentes, amigos, vizinhos, chefes, professores, colegas... inúmeras pessoas que se tornam o exemplo vivo do que podemos fazer da nossa própria vida a partir de escolhas que fazemos e das consequências pelas quais nos responsabilizamos. Deste ponto de vida, o livre-arbítrio é inegável. Temos o poder de escolher, preferir, decidir... entre o que queremos e gostamos, ou não. Temos opções, temos possibilidades. Isso sem levar em conta o fato de que muitos de nós temos apoiadores, incentivadores e "patrocinadores" em muitos casos. Pais que investem nos nossos sonhos, amigos que nos estimulam a seguir com algum projeto, professores que nos orientam. Pessoas que chegaram lá e agora nos puxam para cima. Desde que façamos nossas escolhas.
Acontece que uma grandessíssima parte da população vive numa realidade inimaginável para muitos de nós. Pessoas que nascem e crescem em contextos onde não há uma única referência de sucesso moral e econômico ao seu redor. Desde que nascem se vêem rodeados por pessoas que nunca chegaram a lugar algum (nos termos de que se trata esse post, obviamente). Pai inexistente, irmão traficante, mãe negligente, e, quem poderia ajudar, vejam só, a sociedade excludente. Claro que existem pessoas idôneas em qualquer meio, e mesmo entre a mais desfavorecida das famílias sempre tem uma pá de gente bacana, feliz e idônea, assim como em qualquer classe social. Mas elas não servem muito de exemplo, porque tamanha é a sua vulnerabilidade, que se tornam as mais exploradas pelo mercado e pelo Estado, levando uma vida de muita labuta e pouca dignidade. Uma vida que ninguém quer.
Um jovem que entra para um comando não escolheu ser bandido. Ele foi criado num contexto que o impediu de fazer escolhas conscientes, de longo prazo, baseadas em preceitos de vida éticos e estratégicos. Impedido sim, porque ele não teve alguém que servisse de referência, que fosse para ele o exemplo de onde ele poder chegar, partindo de onde está - o que é muito importante. Quem poderia servir de modelo, geralmente são os que debocham, discriminam, humilham. Ah, mas teve pai e mãe honestos e trabalhadores. Sim, ele viu pai e mãe dedicarem toda uma vida ao trabalho árduo e envelhecerem na fila da farmácia de alto custo, no guichê da agência de crediário, no atendimento do cadastro único do governo, na perícia do INSS, sempre voltando para trás sem terem conseguido o que foram fazer. E não é que ele queira uma vida diferente disso, ele PRECISA de uma vida diferente, por questões de sobrevivência. E para sobreviver não temos margem para escolhas. Fazemos o que é preciso ser feito, e feito está.
Não, ninguém escolhe o pior para si, a não ser quando o pior é a única escolha que você foi ensinado a acreditar que tem. Ver um empresário bem sucedido passando de forma prepotente com seu carro importado e entrando no condomínio que você vai morrer sem conhecer, não o torna um exemplo, uma referência. Mas o irmão do seu amigo de ensino médio, que estudou na mesma escola que você, que cresceu no mesmo bairro e jogou bola com você, quando ele passar com o carro rebaixado e todos os apetrechos da moda, ah... ele sim, ele é uma referência, mesmo que seja o traficante. Porque ele veio do mesmo lugar que você, porque ele te cumprimenta, sabe o seu nome e às vezes até os seus sonhos.
Esse é só um dos inúmeros exemplos que eu poderia citar. Fato é que para cada história de sucesso que vemos nas classes desfavorecidas, existem centenas de outras que não chegaram nem perto disso. E não é porque a maioria não soube fazer escolhas, mas porque poucos foram os que escolheram abrir os seus olhos e estender a mão.
Dizer a uma pessoa que nasceu e cresceu em contextos de dificuldades e privações que ele pode escolher fazer o que é certo, é o mesmo que dizer a nós (classe média), que podemos viver daquilo que amamos. Não, não podemos. A maioria de nós sabe que essa escolha não nos cabe, porque não cabe na nossa realidade. Da mesma forma não cabe na realidade de muitos escolher entre bem e mal, quando eles aprenderam desde cedo que a vida era sobre estar vivo ou morto, e que viver sem dignidade é a mesma coisa que morrer todo dia.
Claro que existem exceções. E que todos devemos ser responsabilizados pelos atos que praticamos. Muito embora, volto a afirmar, que grande parte desses atos sejam muito mais o reflexo convulsivo e complexo de um sistema doente do que decorrência de decisões autônomas e conscientes.
Julguemos menos, ajudemos mais.
"Cara, acorda, olha nosso povo aqui
Nessa UTI,
Louco pra sobreviver,
Precisando de você, hein
Cadê você?"
GOG - Matemática na prática
Eu acho importante esse tipo de análise, pois é uma realidade incontestável e só incentiva e justifica cada vez mais uma certa solidariedade social com os menos favorecidos. Porém é preciso tomar cuidado com isso para não criar um certo coitadismo e acabar excluindo o mérito e a responsabilidade individual que cada um deve ter na vida. Dito isti acrescentaria também que a práxis dessa solidariedade social não deveria ser estatal, financiada via impostos. Preferiria que fosse algo voluntário financiado por doações. Não simpatizo nem um pouco com a ideia de solidariedade compulsória estatizada.
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Olá @discernente! Obrigada por partilhar sua posição sobre o assunto. Penso como você, o ideal seria que a sociedade civil manifestasse de forma voluntária esse tipo de comportamento que, ao meu ver, é uma das maiores expressões de civilidade de um povo. E sim, precisamos tomar cuidado com a vitimização generalizada.
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ptgram
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Obrigada!
Que bom que voltou a postar! Subverter essa realidade é uma tarefa muito difícil. Não quero ter uma visão pessimista sobre o assunto por mais que os fatos me levem, sem pensar em uma resolução definitiva, pensar e refletir sobre, já contruibui para a mudaça, expor esse contexto de forma empatica e generosa é uma uma revolução.
Oie, que bom revê-lo! Realmente, se pararmos para pensar, dá até um desânimo... não só em relação a esse assunto quanto a tantos outros problemas sociais com os quais vamos nos deparando durante o cotidiano. Mas sigamos conversando, debatendo e refletindo sim. Afinal, assim surgem e evoluem as idéias né? Obrigada pelo incentivo.
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