11# Crônica Social Foda

in #pt6 years ago

A espera

Assim que abriu os olhos reuniu forças para se levantar. O corpo velho, cansado, quase despencando de dor e flacidez. Arrastou os pés inchados pelo corredor até o quarto do neto. O coração chega parou de bater por uns segundos, na ansiedade do que viria a encontrar. A cama vazia. Mais um dia.

Passava o dia de ouvido no portão, de olho na porta e no celular. Já nem sabia mais quantos dias haviam se passado e da última vez que teve notícias dele. No fim de tarde se sentava na varanda na frente da casa, na esperança de estar lá quando ele fosse aparecer. E enquanto esperava se lembrava dos dias que se passaram, há não muito tempo, em que ele era uma criança feliz brincando na porta de casa. E se perguntava porque ele se foi, até que se lembrava do dia em que ele pediu para ir morar com a mãe. E do dia em que a mãe o pôs para fora de casa dizendo que não o queria mais. Dez anos. Dez anos de idade e cem mil toneladas no coração. Vagou a noite toda sozinho, naquela cidade desconhecida, até que foi resgatado e levado de volta para avó. Lembrou de quando ele chegou com aquele olhar tão triste que entristecia qualquer um que olhasse para ele, mesmo que de relance. Lembrou de como ele nunca mais foi a mesma criança, porque não era mais uma. E ao 12 foi descobrindo sua própria forma de lidar com a dor que deveras sentia, que era no torpor de qualquer entorpecente barato por aí. E lembrou dos dias em que ele saía de manhã e voltava a noite, mesmo ela tentando trancá-lo dentro de casa. E lembrou do dia que ele saiu e nunca mais voltou. E lembrou de ter passado a noite em claro olhando pela janela o escuro da noite, vendo em qualquer vulto a esperança que se dissipava no instante seguinte, quando se dava conta de que não era ele.

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E lembrou que lembrava disto tudo todos os dias. E lembrou que todos os dias não queria mais lembrar. E lembrou que não podia esquecer. E que o coração apertava tanto que precisava se levantar para tomar o remédio de dormir. E que sofria entre esperar mais um pouco ou entrar e se preparar para dormir. E que no fim esperava até o aperto no peito começar a doer. E que trancava a porta da casa como quem tranca no inferno a quem mais se ama.

Lembrou que não estava mais lembrando, porque era um outro dia e estava apenas repetindo a lembrança dos dias anteriores. Estaria esperando enquanto vive, ou lembrando enquanto espera? Não sabia mais, mas não tinha importância. Importante mesmo era esperar, porque só assim se sentia viva. E assim ia dormir, sob efeito de ansiolíticos pesados que interrompiam a sua lembrança de viver esperando e a faziam sonhar que continuava a esperar.

Assim que abriu os olhos reuniu forças para se levantar. O corpo velho, cansado, quase despencando de dor e flacidez. Arrastou os pés inchados pelo corredor até o quarto do neto. O coração chega parou de bater por uns segundos, na ansiedade do que viria a encontrar. A cama vazia. Mais um dia. Passou o dia de ouvido no portão, de olho na porta e no celular. E neste dia ouviu um barulho no portão. Correu para sala e a porta se abriu. Era ele!

Ela não se lembrou de nada, apenas de dizer: eu lembrei de você todos os dias.
Se abraçaram como se nunca tivessem estado longe, porque quem lembra de alguém que ama, abraça essa pessoa dentro da infinitude do tempo. E quem é lembrado se sente abraçado tanto no tempo presente quanto passado.

Esse post é de uma série de crônicas que decidi escrever, baseadas em fatos da vida real, os quais foram extraídos da minha experiência e do meu cotidiano com famílias em situação de vulnerabilidade social e violações de direitos.

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