Medicina, Arquitectura e Poder: do hospital "conventual" medieval à moderna medicina hospitalar (pt. 3)

O Hospital como Centro de Cálculo

Na arquitectura destes novos hospitais, o médico pôde tomar uma série de decisões, sobretudo no que respeita à organização do espaço interior (distribuição das camas e dos doentes) mas no entanto, o seu poder no hospital era ainda limitado (Forty: 1980: 73). Passou-se dividir os pacientes por alas mais pequenas, agrupando os casos semelhantes, diferenciando entre casos médicos e cirúrgicos, e controlando o ambiente interno, nomeadamente no que respeita à circulação de ar (Forty: 1980: 75). Uma outra alteração foi a criação de estruturas, no hospital, para receber pacientes de ambulatório, como mais uma fonte de casos médico-científicos. Em contrapartida, em Inglaterra, as visitas médicas eram, durante o século XVIII e XIX, geralmente não remuneradas, apesar de permitirem que o médico conseguisse clientes entre os círculos sociais dos governadores hospitalares (Forty, 1980: 73). A relevância do serviço hospitalar estava, para os médicos, no facto de que o espaço reunia toda uma diversidade de casos que podiam ser observados, acompanhados e comparados, registados e acumulados, e deste processo resultaria um incremento do conhecimento (Forty, 1980: 73). A própria relação entre médico e paciente, se viu alterada, em relação ao que se passava na medicina domiciliar, em que o doente era um cliente, no seu lar, e dono e senhor do seu corpo, podendo pronunciar-se ou até mesmo recusar o tratamento (Forty, 1980: 73). Nesta nova relação entre médico como caritativo, e pobre doente como receptor de caridade, os actores vêem a sua posição de poder invertida, favorecendo o doador em detrimento do receptor. E assim, a classe médica se vê na possibilidade de experimentar as suas práticas, num número e extensão tais, que seria impossível de realizar num sistema de saúde domiciliar. Se fosse o seu desejo, o médico podia, não só examinar os seus doentes, com total liberdade, como era também possível adiar o diagnóstico e o tratamento para fins de observação e registo, ou até mesmo submeter os doentes a tratamentos ou cirurgias, num espírito experimentalista, sem o consentimento dos mesmos (Forty, 1980: 74).


A manutenção de todas estas observações e consequente produção de informação, e no seguimento do princípio do controlo da população através de indicadores estatísticos, que permitem pensar uma massa populacional acima das suas multiplicidades, são introduzidos no hospital sistemas de registo próprios, para o acompanhamento do desempenho, e para a acumulação de conhecimento. Em meados do século XVIII, foi criada na Alemanha a polícia médica, que viria a ser aplicada na viragem do século, como consequência das políticas médicas de Estado, e que tinham dois princípios de actividade: por um lado constituir um sistema mais completo de contabilidade e registo da mortalidade, e por outro uma uniformização do ensino e do saber médicos (Foucault, 1979: 83). No processo de uniformização do ensino da medicina, o hospital não é de todo inocente. Neste sentido, uma outra alteração arquitectónica com a marca da classe médica, está na criação de espaços para uma permanência mais prolongada no hospital, e pela criação de hospitais-escola, ou seja, hospitais adaptados ao ensino da medicina, que até então se fazia de forma “artesanal”, em que um médico individual era responsável por ensinar um pequeno grupo de alunos (Forty, 1980: 76). Esta reforma do ensino, permitiu treinar e disciplinar os jovens médicos nos princípios e exigências da medicina moderna, experimental, para que a prática da mesma incluísse e mantivesse um registo contínuo dos casos, diagnósticos, resultados, etc. O mais produtivos possível. Estes métodos de registo deveriam garantir que toda a informação útil era regista de acordo com determinadas directivas, para que depois, convenientemente classificada, pudesse ser acumulada, recuperada e passível de ser relacionada entre si. Este processo possibilitou a constituição de ciclos de acumulação de conhecimento (Latour, 1987: 223). O poder que a entidade médica conseguiu no hospital, permitiu-lhe analisar e registar toda uma série de situações, torna-las móveis, no tempo e no espaço, classifica-las e organiza-las (estabiliza-las) para que uma nova consulta fosse possível, e ainda, a técnica de registo deveria permitir a combinação e a comparação entre as diversas informações. A cada ciclo de acumulação, mais informação é recolhida e conservada no hospital, que se constitui assim como um centro de cálculo, no qual é acumulado e posteriormente combinado o conhecimento, reduzido, se necessário, a dimensões que possibilitem a apreensão mais ou menos imediata de uma determinada informação que se pretende válida, da qual a estatística é um exemplo (Latour, 1987, 233).


Enquadrando o Hospital, nos conceitos de centro de cálculo e de ciclo de acumulação, de Bruno Latour (1987), este pode ser percebido como um centro de capitalização do savois fair médico, desequilibrando a seu favor as relações de poder entre os diferentes actores, por possuírem uma determinada técnica, exclusiva em certos limites, que é de forma considerável, consequência da visita de carácter utilitarista que é realizada aos doentes, sob pena de punição, no caso de desobediência e desordem por parte dos mesmos.
No século XVI, a classe médica também começa a desenvolver uma identidade profissional específica, quer pela criação de associações nacionais, quer através de imprensa especializada, não só a representação do médico se tornou mais visível na sociedade, como também os próprios médicos tinham aqui uma série de dispositivos para disseminarem uma determinada opinião uniformizada sobre a própria classe (Forty, 1980: 81). À medida que a mesma vai ganhando poder, vai-se aproximando também das classes mais altas, as autoridades hospitalares, que se virá a reflectir, juntamente com os arquitectos e as enfermeiras, na defesa de uma arquitectura hospitalar em particular: o plano pavilhonar (Forty, 1980: 78). No decorrer do século XIX, foram construídos alguns destes hospitais, talvez como um reflexo dessa mesma ascensão de classes profissionais, da classe médica, sobretudo, mas também dos arquitectos e das enfermeiras, que se começavam também agora a afirmar na questão hospitalar (Forty, 1980: 78).


Para o conhecimento médico da época, as benesses do plano pavilhonar passavam pela capacidade de ventilação que este modelo oferecia, pois acreditava-se que a doença resultava da concentração de ar “abafado” ou de odores indesejáveis que se acumulavam no ar (Forty, 1980: 79). Aliás, esta acção sobre o ar e a água que circulam no espaço público, não só no interior dos edifícios, como também nas ruas e avenidas, no fornecimento de água e sistema de esgotos, já era visível nas considerações sobre o espaço urbano sobre o qual se procurou actuar, no caso de Paris, no decorrer do século XIX (Foucault, 1979: 89). Os elementos como a água e o ar eram então considerados como factores patogénico, sobre os quais é necessário actuar (Forty, 1980: 78). Para os arquitectos, o plano pavilhonar, como se tratava de uma estrutura que envolvia elevados custos de construção, os honorários cobrados seriam mais aliciantes do que outros projectos, economicamente menos compensatórios (Forty: 1980: 83).


Para as enfermeiras, cujo apoio ao plano se fez demonstrar pela Florence Nightingale, o novo desenho do hospital, e em particular das suas alas, visava um duplo objectivo: tornar o trabalho das enfermeiras mais eficiente e, simultaneamente transformar a enfermagem numa ocupação de respeito para mulheres das classes média e alta (Forty, 1980: 80). Este tipo de ala hospitalar, a ala Nighthingale, como ficou conhecida, começava por se estabelecer como uma unidade relativamente isolada, dentro do hospital, da qual havia apenas uma entrada e saída, situada numa das extremidades, junto ao gabinete da enfermeira, para que fosse possível controlar, a circulação de pessoas, assim como possibilitava o controlo dos doentes acamados (Forty, 1980: 80). É um processo de conquista do espaço hospitalar, por parte do pessoal de enfermagem, que até então não tinha qualquer poder sobre os moldes arquitectónicos hospitalares.
O modelo pavilhonar, no entanto, não só era mais dispendioso na sua construção, como também não apresentava resultados de sucesso que justificassem esse investimento. (Forty, 1980: 82). Com a descoberta da teoria do germe que veio substituir a teoria zimótica, na segunda metade do século XIX, acabam por retirar o apoio médico ao plano pavilhonar (Forty, 1980: 82). Sem qualquer conhecimento científico que suportasse a necessidade de ventilar constantemente as alas, este modelo acaba por perder importância. Apenas os arquitectos e as enfermeiras continuaram a defender as suas vantagens (Forty, 1980: 83).


No século XX, com o hospital já centralizado no processo de cura, e oferencendo melhores hipóteses de recuperação do que em casa, e não só para os pobres, mas para uma sociedade que, educada na já referida ética do trabalho, começou a procurar pagar os serviços de saúde, possibilitando-lhe alguma autoridade, aos sobre si mesmos, aquando da assistência hospitalar (Forty, 1980: 84). O poder crescente do médico, possibilitou a sua influência junto das autoridades hospitalares, o acesso a fundos possibilitou um maior investimento na investigação médica, da qual não podem ser dissociadas, toda uma série de equipamentos tecnológicos dos quais a medicina se veio a tornar cada vez mais dependente. Os hospitais, continuarão ainda na contemporaneidade a acumular conhecimentos em ciclos de acumulação, cujas tecnologias são elas próprias consequência de outros ciclos anteriores, num processo de modernização do hospital, que pode ser relativamente delimitado aos séculos XVIII e XIX. Mas cujas consequências são facilmente visíveis, pelo menos no que se refere a dois pontos: por um lado, a (quase) impossibilidade de a assistência médica ser realizada ao domicílio, devida à clara posição em que o médico se encontra, “preso” ao hospital, pela dependência tecnológica do saber fazer de diagnóstico e terapia; por outro lado, todos os processos de disciplina que se vão desenrolando ou sobrepondo (amontoando?). Desde a necessidade de uniformizar o ensino médico, da vigilância que Nightingale procura exercer, não apenas sobre pacientes, mas também sobre o pessoal hierarquicamente inferior, e por último, os pobres doentes cuja posição social permitiu que fossem submetidos à tecnologia de disciplina e reeducação do individuo coma parte de uma população nacional produtora.

Fim.

Medicina, Arquitectura e Poder: do hospital "conventual" medieval à moderna medicina hospitalar (pt. 2)

Bibliografia:

Conc. Trid., S. XIV in Paulo VI, Papa. “Unção e pastoral dos doentes”. www.liturgia.pt/rituais/Enfermos.pdf (acedido a 27/01/2012).

Forty, Adrian, 1980. “The modern hospital in England and France: the social and medical uses of architecture” in King, A. (Ed.), Building and Society, Londres, Routledge, pp:61-93.

Latour, Bruno, 1987. “Science in action”: Centres of calculation. Open University Press, England, pp: 215-258.

Foucault, Michel, 1979. Microfísica do poder. Organizaçao e tradução de Roberto Machado. Edições Graal, Rio de Janeiro.

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