Não sou o António Lobo Antunes (PT)

in Tertúlia Portuguesa17 hours ago (edited)

Não sou o António Lobo Antunes, senão, dizia-vos que há homens que bebem. Na minha terra, há homens que bebem. Acordo cedo, a uma hora à qual não é conveniente haver cafés abertos. Ainda por cima, chove a cântaros. Saio para a rua e encontro a D. Maria do costume a passear o seu cãozinho que vai deixando marcos de navegação ao longo do passeio. À senhora, não lhe importa. A esta hora não está ninguém a ver e eu, passo por ela todos os dias e não lhe digo nada. Convenço-me que é para não me chatear, mas, secretamente, desejo, um dia, passear um cão dez vezes maior que o dela que lhe deixe a porta de casa intransitável antes da sua saída matinal para enfeitar os passeios. Sigo caminho a pensar que é destas coisas que as relações de boa vizinhança são feitas. Penso noutra coisa. Onde é que se bebe café a esta hora?

( Imagem: Os bêbados, de José Malhoa, 1907 )

Na minha terra, há homens que bebem. Na minha terra há homens que bebem vinho a martelo que é mais barato que uma bica. Na minha terra, esses homens já bebem à hora que eu saio de casa. E eu, saio de casa cedo, à hora que a D. Maria decora os passeios da minha rua e os cafés estão convenientemente fechados. Se eu fosse o António Lobo Antunes, ainda havia de escrever sobre isso, ou, se fosse o Malhoa, havia de os pintar num quadro. Porque na minha terra, ainda há homens que acordam para beber à mesma hora que a D. Maria passeia o cachorro. O animal, chama-se Bóbi e é o único personagem desta história que se mete na sua vida e faz o que tem que fazer sem ligar aos outros. Os homens que passaram para ir beber disseram 'bom dia, D. Maria' e seguiram para os seus importantes afazeres. Enquanto a D. Maria despeja o Bóbi, estes homens estão cismados que há uma pipa para despejar. Não há tempo. É 'bom dia D. Maria' e já está.

Se eu fosse o António Lobo Antunes, ou o Malhoa, tão cedo que despertei e saí para a rua, por não ser uma hora nada conveniente para encontrar cafés abertos, tinha seguido aqueles homens, que eu sei que são homens que ainda bebem, e atrás de seus passos estaria seguro de encontrar a tal infusão de cafeína que me faz falta para espevitar. Talvez um dia destes já tenha bebido quando encontrar a D. Maria e o Bóbi e lhes diga umas coisas. Mas hoje, não, que ainda não bebi o café, nem li o jornal, e não posso dizer nada à D.Maria antes de saber se o Governo não mudou de ideias desde ontem, e já se pode cagar nos passeios à vontadinha. Na minha terra, nunca se sabe, porque a horas que ainda são inconvenientes para haver cafés abertos, já há homens que bebem na taberna da esquina.

Não me atrevo a trocar palavras com ninguém antes de ter nas mãos o Correio da Manhã da véspera, porque a hora é inconveniente para já ter chegado o de hoje e me é indiferente se a informação está em dia. Afinal de contas, vivo numa terra em que os homens bebem e aquilo que leio agora pode já ter mudado daqui a pouco. Se eu fosse o Lobo Antunes, até era capaz de escrever umas coisas sobre ser indiferente ser actualizado em relação às noticias de hoje, ou às de ontem. Como, na minha terra, os homens bebem, também pouco lhes importa, porque quando chegam as notícias novas, já estão a falar do Benfica e do Sporting, que um jogou ontem e o outro vai jogar amanhã e venha daí mais um copinho de verde, D. Maria. Esta D. Maria, é outra que não a do cãozinho, que os homens da minha terra que ainda bebem gostam muito porque é anafadinha e usa um grande decote. E estes homens que bebem, quanto mais tempo ali passam, mais lhes agrada esta D. Maria, porque não há mulheres feias. O que há, é homens sóbrios.

E eu, sento-me com o meu café e descubro que para os homens da minha terra que bebem há um preço especial para verdinho a martelo e oferecem-me e insistem que também tome um que é o Alfredo a pagar e eu recuso polidamente, que não vai bem com o café e fico a pensar que se fosse o Malhoa ainda havia de pintar aquele quadro. Um quadro do Malhoa que fosse como um texto do Lobo Antunes, com homens que bebem e uns são barrigudos, outros estão coradinhos e os que restam têm as pencas inchadas do vinho. E são homens que estiveram na guerra e tiveram vidas duras e outros foram da função pública e até há um que andou na política, mas, sobretudo, são homens que bebem. E são homens que saem para beber e deixam as senhoras em casa, a descascar batatas para o almoço, e outros que vieram da pesca e um que vai agora para a caça e outro ainda que tem que se despachar que a sobrinha casa hoje.

Na minha terra, há homens que, a esta hora tão inconveniente, já bebem e chegam as notícias quando o decote da D. Maria os não distrai da televisão. Estes homens da minha terra, que bebem, não lhes importa que o nosso Primeiro tome decisões à bêbado, que o líder da oposição precise de enfiar uns bagaços para ganhar coragem ou que o Presidente arroche das ginjinhas na véspera de Natal. Porque nesta terra os homens bebem. E bebem a horas inconvenientes, que os cafés ainda estão fechados e a D. Maria do Bóbi e a D. Maria do decote já estão bem acordadas. E se eu fosse o António Lobo Antunes, agora escrevia que enquanto há uns poucos felizes que ainda bebem o palheto mais barato que a bica, e outros que regalam os olhos no decote da D. Maria, enquanto falam do Benfica e do Sporting que o Pinto da Costa já morreu, à volta para casa não há mina que o Bóbi tenha deixado que não seja pisada.

Pedro Estadão 09.03.25

@hefestus

Nota: Este autor não segue as normas do Acordo Ortográfico, que considera ser uma abominação dos infernos.

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